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domingo, 15 de janeiro de 2012

Inteiro - Parte 4

“Foi um erro vir aqui. Nada mudou. Você ainda é krokul? Você permanece degradado.”

Não. Eles iriam ouvir. Ele os faria ouvir. Havia, afinal de contas, a epifania. Nobambo desviou os olhos do grupo para a fonte no centro da pequena praça. Daquela água, ele pediu clareza.

O degradado sentiu os pensamentos ganhando foco. Agradeceu à água e, apoiando-se fortemente em sua bengala, forçou-se a confrontar o mar de olhares de desaprovação. Houve um momento de silêncio desconfortável.

– Isso é uma tolice – alguém sussurrou.

De início, ao tentar falar, a voz de Nobambo soou pequena e rouca, distante até mesmo para os seus próprios ouvidos. O degradado limpou a garganta e recomeçou, com mais potência:

– Eu vim aqui para... falar com vocês sobre...

– Estamos desperdiçando nosso tempo. O que um krokul tem a dizer para nós?

Mais vozes de discordância engrossaram o coro. Nobambo fraquejou. Seus lábios se moviam, mas a voz não saía.

“Eu estava certo. Isso foi um erro.”

Nobambo virou de costas para ir embora e olhou dentro dos olhos plácidos do profeta, o líder dos draeneis, Velen.

– Vais a algum lugar? – O vidente olhou para Nobambo, criticando-o.

***************

Nobambo sentou no alto de uma montanha de onde se podia avistar as terras calcinadas. Elas não haviam mudado muito nos últimos... Quanto tempo fazia desde a primeira vez que ele se aventurara aqui? Cinco anos? Seis?

Quando ele e os demais foram exilados para o novo acampamento dos krokul, como eles finalmente começaram a ser chamados, Nobambo estava frustrado e deprimido. Foi ao ponto mais distante possível na única direção que lhe foi permitida. Sempre quisera investigar os picos na fronteira do Pântano Zíngaro, mas na base dessas montanhas ficavam os acampamentos dos que não foram “afetados”, uma região agora proibida para a “espécie” dele.

E assim, ele se aventurou em meio ao calor escaldante até os picos muito acima dos desertos mais desolados de Draenor; desertos que um dia foram clareiras verdejantes, antes da política de ódio e genocídio dos orcs; desertos criados por bruxos e suas magias perversas.
Ao menos os orcs eram um problema menor nessa época. Alguns grupos errantes ainda patrulhavam, e eles ainda matavam draeneis assim que os avistavam. Contudo, os selvagens de pele verde estavam em menor número. Muitos deles partiram através do portal havia anos e não voltaram.

Como resultado, os draeneis começaram a construir uma nova cidade em algum lugar do pântano, como soube Nobambo. “Mas isso não importa”, ele pensou. “É uma cidade à qual nunca serei bem-vindo”.

As mudanças em Nobambo e nos demais continuaram. Apêndices surgiam onde, antes, havia pele lisa. Manchas e verrugas e estranhas protuberâncias cresciam pelo corpo todo. Os cascos, uma das características mais particulares dos draeneis, já não existiam, substituídos por coisas que, agora, lembravam pés malformados. E tais alterações não se restringiam ao físico. Seus cérebros lutavam mais e mais para manter as funções superiores. E alguns, alguns se perderam por completo, tornando-se cascas ocas que perambulavam sem rumo, conversando com plateias que só existiam em suas mentes. Alguns desses Perdidos simplesmente acordavam um dia e partiam para nunca retornar. Um dos primeiros a fazer isso foi Estes. Agora, restava a Korin apenas um dos companheiros com os quais ela viveu aqueles momentos sombrios em Shattrath.

“Basta”, pensou Nobambo. “Pare de enrolar. Faça o que você veio fazer”.

O krokul procrastinava porque parte dele sabia que esta vez não seria diferente das outras. Mas, ainda assim, ele o faria, assim como ele havia feito todo dia ao longo das últimas semanas... porque, de alguma forma, uma parte dele ainda tinha esperança.

Ele fechou os olhos, expulsou todos os pensamentos externos da mente e tentou alcançar a Luz. “Por favor, só esta vez... permita-me saciar a minha sede da sua radiante glória”.
Nada.

“Insista.”

Nobambo se concentrou com cada grama de foco que lhe restava.

“Nobambo.”

O krokul quase saltou para fora da própria pele, seus olhos arregalando-se enquanto ele se apoiava com a mão. Olhou em volta e, então, mirou o céu.

“Encontrei você!”

Nobambo viu Korin e suspirou profundamente, balançando a cabeça. Korin chamou-lhe a atenção:
– Você já deveria saber que a Luz não voltará a lhe favorecer.

Ela se aproximou e sentou ao lado de Nobambo, parecendo esgotada e algo confusa.

– Como você está? – perguntou o krokul.

– Não pior que o normal.

Nobambo esperava mais palavras, contudo Korin simplesmente observava a paisagem hostil.
Despercebida pelos dois, uma figura os espiava de uma pilha de pedras, observando. Ouvindo.
– Você queria me contar alguma coisa?

Korin ponderou por um momento e finalmente disse:

– Ah, sim! Um novo membro chegou ao acampamento hoje. Disse que os orcs estavam... se reagrupando. Preparando-se para alguma coisa. Eles estão sendo comandados por um novo... como eles chamam? Aqueles que fazem magia negra?

– Bruxo?

– Sim, acho que era isso. Korin se levantou e deu um passo à frente, parando a poucos centímetros da beirada do penhasco. Ficou em silêncio por um longo momento.

Não longe dali, a figura atrás das pedras partiu tão silenciosamente quanto chegara.

Os olhos de Korin estavam distantes, e da mesma forma soava a voz rouca, como se ela não estivesse inteiramente presente. – O que você acha que aconteceria se eu desse mais alguns passos?

Nobambo hesitou, sem saber ao certo se ela estava ou não brincando:

– Acho que você cairia.

– Sim, o meu corpo cairia. Mas, por vezes, acho que espírito... voaria? Não, não é essa a palavra. Qual é a palavra?... Subir e subir, como se eu estivesse voando?

Nobambo pensou e respondeu:

– Flutuar?

– Sim! O meu corpo cairia, mas o meu espírito flutuaria.

Dias depois, Nobambo acordou com a cabeça doendo e o estômago vazio. Decidiu sair e ver se restava algum peixe da refeição da noite anterior.

Enquanto saía da caverna, ele notou que os demais estavam reunidos, olhando para cima, protegendo os olhos. Ele saiu debaixo de um cogumelo gigante, ergueu os olhos e também foi forçado a protegê-los, boquiaberto.

Uma fenda aparecera ao longo do céu avermelhado da aurora. Era como se um rasgo tivesse sido aberto na malha do mundo, permitindo a intrusão de luzes estonteantes e de alguma espécie de energia crua e inacreditavelmente poderosa. A fenda ondulava e dançava tal como uma imensa serpente de pura luz.

O chão começou a tremer. A pressão se acumulava na cabeça de Nobambo, ameaçando explodir-lhe os ouvidos. A eletricidade estalava no ar, os pelos do corpo de Nobambo se arrepiaram e, por um breve e enlouquecedor instante, parecia que a própria realidade estava se desfazendo.

Enquanto Nobambo assistia ao terrível espetáculo, por um breve segundo os degradados reunidos se separaram em várias imagens espelhadas: algumas mais velhas, outras mais jovens, algumas não degradadas, mas sim bastante saudáveis e não afetadas. E, então, a ilusão se foi. O chão se moveu como se Nobambo estivesse sobre um carro que, de repente, começara a se mover. Ele e os demais foram lançados à lama e ali ficaram enquanto o tremor continuava.

Após alguns momentos, o tremou diminuiu gradualmente até finalmente parar. Korin estava com os olhos arregalados e fixos na fenda, que agora se fechava, e só conseguiu sussurrar:
– Nosso mundo está chegando ao fim.

O mundo deles não acabou. Mas chegou perto disso.

Quando, no dia seguinte, Nobambo retornou ao seu lugar de costume no alto das montanhas, avistou um horizonte enlouquecido. Fumaça se espalhava pelo céu, lançando uma nuvem negra sobre a terra. O ar queimava-lhe os pulmões. Na base do penhasco, uma fissura gigante se abrira e emanava vapor. Nobambo se inclinou e viu um brilho fraco no fundo da fissura.
Grandes pedaços de terra foram arrancados do solo desértico e flutuavam inexplicavelmente no ar. Partes do céu pareciam como que janelas para... algo. Nobambo tinha a impressão de conseguir vislumbrar outros mundos através das aberturas, alguns distantes, outros próximos, mas não sabia dizer se eram reais ou alguma ilusão provocada pela catástrofe.
E, por todo canto, em todo lugar, imperava um silêncio quase absoluto, como se as criaturas da região tivessem morrido ou fugido para algum esconderijo remoto. Mesmo assim, Nobambo sentia que não estava só. Por um breve instante, pensou ter apanhado um movimento furtivo com o canto do olho. Olhou ao redor, em parte esperando encontrar Korin.
Nada. Apenas um truque da sua mente perturbada.

Nobambo olhou mais uma vez para a paisagem horrenda à frente e se perguntou se o futuro próximo traria o fim de tudo que ele conhecia.

Mas o tempo passou e a vida, tal como estava, seguiu adiante. Relatórios chegavam ao acampamento sobre regiões inteiramente destruídas. Mas o mundo sobrevivera.
Sofrido, deformado e atormentado... Assim o mundo sobrevivera, como os degradados. Eles comiam nozes e raízes e os poucos peixes que conseguiam encontrar no pântano. Ferviam a água e se abrigavam de tempestades diferentes de todas já vistas, mas sobreviveram. À medida que as estações passaram, os animais retornaram. Alguns de espécies que não existiam antes. Mas, sim, a fauna retornou. Quando os degradados tinham a sorte de uma caçada bem-sucedida, comiam carne. Eles sobreviveram.

Ao menos, a maioria deles. Há alguns dias, Herac desaparecera. Ele andava distante e confuso havia muitos meses e, apesar de Korin não comentar o assunto, tanto ela quanto Nobambo sabiam que ele estava perto de se juntar aos perdidos. Herac era o último dos protetores de Korin em Shattrath, e Nobambo lamentava a perda por que ela passara.
E, apesar de não falar a respeito, Nobambo se perguntava se também poderia perder o controle da própria sanidade e partir pelo desconhecido para nunca voltar, tornando-se pouco mais do que uma memória, se tanto.

O krokul continuou a vigília diária, peregrinando ao remoto topo da montanha, de alguma forma mantendo a esperança de que, um dia, se ele cumprisse o castigo e fizesse por merecer tal graça, a Luz voltaria a brilhar sobre seu espírito.

Todos os dias, Nobambo voltava decepcionado ao acampamento.

E, todas as noites, ele sofria com o mesmo pesadelo terrível.

Nobambo via-se em frente a Shattrath, batendo os punhos contra os portões fechados enquanto os gritos dos moribundos se estilhaçavam na atmosfera da noite. Sua mente consciente sabia que isso não passava de mais um sonho, outro pesadelo, e se perguntava se, desta vez, tudo se passaria igual a todas as outras.

O krokul batia repetidamente contra a madeira até as mãos machucadas começarem a sangrar. Lá dentro, crianças e mulheres morriam de forma lenta e horrível. Um a um, os gritos cessavam até restar apenas um último lamento atormentado. Ele reconhecia aquele choro: era a voz que ecoara pela Mata Terokkar quando ele escapou da cidade.

Mas esse lamento logo cessava também, e nada restava além do silêncio. Nobambo se afastava dos portões, olhando para o próprio corpo frágil, deformado e imprestável. Ele tremia e chorava, aguardando o inevitável despertar.

Um rangido ecoou enquanto os portões se abriam lentamente. Nobambo olhou para cima com os olhos arregalados. Isso nunca acontecera antes. Isso era novo. Qual seria o significado disso?

As enormes portas revelaram um Bairro Inferior vazio, as paredes e as muralhas internas iluminadas por uma única e grande fogueira.

Nobambo entrou, atraído pelo calor das chamas. Olhou ao redor, mas não havia corpos, nenhum sinal da carnificina além de algumas armas abandonadas em torno da fogueira.
Um trovão soou levemente e Nobambo sentiu uma gota de chuva no braço. Deu mais um passo à frente e os portões gigantes se fecharam atrás dele.

Então, ouviu ruídos, algo se arrastando do outro lado da fogueira, aproximando-se. Ele não carregava arma alguma, nem sequer a bengala, e saber que se tratava de um sonho em nada aliviou-lhe a sensação de perigo. Preparou-se para agarrar um tição da fogueira quando viu uma draenaia se aproximar da luz.

A chuva persistia.

Nobambo sorriu de início, feliz em ver que um deles havia sobrevivido, mas o sorriso logo se foi quando viu que ela ostentava um corte sangrento na garganta e hematomas pelo corpo. O braço esquerdo dela estava dependurado e inútil. Ela o encarava com olhos vazios, mas havia algo mais no semblante dela... algo de acusação. À medida que a draenaia se aproximava, Nobambo percebeu que se tratava de Shaka. Logo, outras se juntaram a ela, multidões delas, cambaleando adiante, pelos dois lados, com os olhos vitrificados e os corpos terrivelmente mutilados.

O vento se intensificou, atiçando o fogo. A chuva se tornou um temporal. Uma a uma, as mulheres se abaixavam para pegar as várias armas dispostas pelo chão de terra e avançavam. Nobambo agarrou uma tocha da fogueira.

“Eu queria ter salvado vocês! Não havia nada que eu pudesse fazer”, ele queria gritar, mas as palavras não saíam. Sentia os movimentos lentos e restritos.

O vento tornou a soprar forte e apagou a tocha que Nobambo carregava. As mulheres chacinadas se aproximavam com as armas erguidas enquanto o vento lambia as chamas da fogueira até ela também se apagar, deixando Nobambo na escuridão total.

Ele esperou, ouvindo... tentando escutar os sons da aproximação delas em meio à tempestade.
Subitamente, uma mão gélida se fechou em torno do pulso de Nobambo, que gritou...
E despertou, sentindo-se exausto, mais cansado do que ao deitar. Esses sonhos lhe eram custosos.

Nobambo decidiu que o ar da manhã haveria de lhe fazer algum bem. Talvez Korin estivesse acordada e eles pudessem conversar.

Nobambo saiu e foi até onde alguns dos demais estavam reunidos para a refeição matinal. Perguntou se algum dos novos membros sabia onde estava Korin.
– Ela partiu.

– Partiu? Para onde? Quando?

– Há alguns instantes. Ela não disse para onde. Ela estava estranha... disse que ia... Qual é mesmo a palavra?

O degradado parou momentaneamente, pensou e, então, fez que sim com a cabeça ao lembrar.
– É isso. Ela disse que ia flutuar.

Nobambo correu o mais rápido que as pernas permitiam. Mas, quando conseguiu chegar nos picos, seus pulmões estavam em chamas. Ele tossia e expelia muco verde e espesso, e suas pernas tremiam descontroladamente.

No platô que levava ao penhasco, Nobambo viu Korin de pé perante o abismo, olhando para baixo.

– Korin! Pare!

Ela olhou para trás, esboçou o mais sutil dos sorrisos e, então, olhou para a frente e deu um passo silencioso ao vazio, desaparecendo em meio a uma densa nuvem de vapor.
Nobambo aproximou-se do abismo e olhou para baixo, mas viu nada além daquele brilho fraco muito distante.

“Você chegou tarde demais.”

Mais uma vez, ele falhara, assim como falhou em salvar as mulheres de Shattrath. Nobambo cerrou os olhos com firmeza e chamou a Luz com a mente: “Por quê? Por que você me abandonou? Por que você continua a me atormentar? Não fui seu servo fiel?”

Ainda nenhuma resposta. Apenas uma brisa gentil enxugando-lhe as lágrimas do rosto.
Talvez Korin estivesse certa. Nobambo sabia, no fundo, exatamente por que ela fez o que fez: não queria acabar como os perdidos. Talvez ela tenha encontrado a única saída.
Este mundo não tinha mais coisa alguma para ele. Parecia tão fácil dar esses últimos passos, lançar-se abismo adentro e dar um basta ao sofrimento.

Perto dali, uma figura saiu de trás de um monte de pedras e se preparou para chamar...
Mas, mesmo agora, renegado pelo próprio povo, ignorado pela Luz, atormentado pelas almas daqueles que não conseguira salvar... Nobambo percebeu que desistir não era uma opção.

A brisa, então, virou ventania, espalhando nuvens de vapor e soprando com tanta força que Nobambo foi afastado do precipício. Em meio a isso, ele ouviu claramente uma única palavra:

– Tudo...

Nobambo se esforçou para ouvir. Por certo sua sanidade chegara ao fim. Por certo isso era uma ilusão da sua mente.

A figura próxima às pedras tornou a se esconder, continuando a observar silenciosamente.
O vento se intensificou cada vez mais. – Tudo que é...

Mais palavras. Que loucura era essa? Isso não era coisa da Luz. A Luz não “falava”: ela era um calor que permeava o corpo. Isso era algo novo, algo diferente. Uma rajada de vento atravessou o platô, forçando Nobambo a se sentar.

– Tudo que existe... tem vida.

Depois de implorar por todos esses anos, Nobambo finalmente recebera uma resposta, uma resposta que não viera da Luz...

Mas do vento.

Nobambo já ouvira falar de práticas órquicas que lidavam com os elementos: terra, vento, fogo e água. O povo dele testemunhara alguns dos poderes desses “xamãs” antes da campanha assassina dos orcs, mas tais coisas eram totalmente estranhas para os draeneis.

Ao longo dos vários dias seguintes, Nobambo retornou ao pico onde ouvira o vento sussurrando garantias de que não estava só, promessas e a irresistível sugestão de que uma fartura de conhecimento o aguardava. Por vezes, a voz do vento era calma e apaziguadora; outras, era insistente e invasora. Enquanto isso, uma dúvida persistia na mente de Nobambo: talvez ele estivesse enlouquecendo, afinal de contas.

No quinto dia, ao sentar-se novamente à beira do penhasco, Nobambo escutou um estrondo que pareceu-lhe um trovão, embora o céu estivesse limpo. O krokul abriu os olhos e percebeu uma enorme coluna de fogo brotando da fissura no solo e elevando-se para além do cume da montanha. As chamas se espalharam, e naquele bruxulear de fogo Nobambo enxergou formas nebulosas metamorfoseando-se contra a luz. O fogo falou, ribombante como uma tempestade:
– Vá às montanhas de Nagrand. Por entre os picos você encontrará o lugar... onde sua verdadeira jornada se iniciará.

Nobambo pensou alguns instantes antes de responder:

– Para chegar lá, terei que atravessar as terras dos incólumes, por onde não posso passar.
O krokul sentiu o rosto afogueado, conforme as chamas inflamavam-se ainda mais:
– Não questione a oportunidade que lhe está sendo dada!

O fogo arrefeceu e continuou:

– Caminhe com a cabeça erguida, pois você não mais está sozinho.

Não muito longe dali, o observador agachou-se atrás de um esconderijo. Embora não fosse possível escutar os elementos, as labaredas e as imagens bruxuleantes eram claramente visíveis. Se Nobambo pudesse olhar nos olhos do vigia naquele instante, teria visto puro assombro.

Nos dias seguintes, Nobambo cumpriu a árdua travessia sentindo o vento soprando-lhe às costas e sussurrando-lhe o tempo todo. Descobriu que os xamãs órquicos comungavam com os elementos, mas que tal união rompeu-se quando os orcs voltaram-se para a magia negra. O krokul poderia ter aprendido mais, contudo nem sempre conseguia entender a mensagem por inteiro, como se a comunicação estivesse filtrada ou restrita.

Por diversas vezes Nobambo pensou ouvir passos atrás de si, e sempre que procurava a origem do ruído tinha a impressão de que alguém ou alguma coisa escondia-se. Perguntava-se se seriam os elementos ou mero fruto de sua imaginação.

Ao chegar ao acampamento dos incólumes, o sol já havia se posto há tempos. No entanto, a aproximação certamente fora percebida, pois dois guardas o aguardavam nos limites do território.

– O que queres aqui? – indagou o guarda mais forte.

– Meu propósito é apenas chegar às montanhas.

Outros membros do acampamento surgiram, observando Nobambo com desconfiança.

– Nossas ordens são claras: é proibida a presença de krokuls nos campos. Terás de ir a outro lugar.

– Não quero permanecer no seu acampamento, apenas atravessá-lo – Nobambo retrucou dando um passo à frente.

O guarda empurrou Nobambo:

– Eu avisei que...

Um ensurdecedor trovão interrompeu-o, e nuvens negras tomaram o céu claro, despejando um dilúvio. O vento gentil que impulsionou Nobambo agora soprava com fantástica violência, empurrando os guardas para trás. Surpreendentemente, o vento e a chuva desviavam-se de Nobambo e açoitavam apenas os guardas, que caíram na lama.

O krokul observou tudo com os olhos arregalados de espanto:

– Então isso é o que acontece – refletiu em voz alta, sorrindo – quando se tem os elementos como aliados.

Os membros do acampamento correram para as cavernas. Os guardas paralisaram-se de medo. Nobambo prosseguiu lentamente apoiando-se no cajado, atravessou o acampamento e, por fim, chegou ao sopé das montanhas, deixando para trás draeneis estarrecidos, amedrontados e confusos.

A criatura que vinha seguindo Nobambo saiu do esconderijo atrás de um cogumelo gigante. Não ousaria avançar pois, afinal de contas, era um krokul.

Os acontecimentos que Akama acabara de testemunhar plantaram-lhe uma semente na alma. Desde que acordara do longo sono, sentira apenas desespero e um perturbador medo do futuro. No entanto, o que Nobambo acabara de fazer, a visão dos elementos levantando-se em defesa de um krokul, despertaram sentimentos que Akama temia estarem extintos há muito tempo.
Esperança.

Com novo entusiasmo, Akama voltou, calmamente, para o pântano.

Horas mais tarde, exausto, Nobambo escalou até o alto das montanhas, onde começou a ver sinais de flora verdejante. Seu passo diminuiu, devido ao cansaço, mas o vento o impulsionou, e a terra sob seus pés pareceu conferir-lhe forças. A chuva não cedeu, mas dava a impressão de molhar toda a terra menos Nobambo, e formou córregos onde o krokul aplacava a sede.

Ao aproximar-se do cume, Nobambo começou a escutar vozes simultâneas: uma grave e persistente, seguida pelo sussurro familiar do vento e pelo estrondo ocasional do fogo. As vozes chocavam-se caoticamente, ansiosas por se comunicarem, em uma cacofonia que forçou o krokul a deter-se:

– Basta! Não consigo entendê-los ao mesmo tempo.

Nobambo reuniu a pouca força que lhe restava e chegou ao topo de uma montanha que se abria para uma paisagem luxuriante. Ali descortinava-se a Draenor de outrora: fértil e serena, um belo refúgio coberto de jardins, cachoeiras e vida em ebulição.

– Perdoe-os. Há muito não sentem a influência apaziguadora de um xamã. Estão todos raivosos, confusos e ainda atordoados com o golpe que lhes foi desferido.

– O cataclismo! – exclamou Nobambo ao avançar por entre aquele cenário tranquilo. O krokul ajoelhou-se e bebeu de um lago, o que o fez sentir imediatamente rejuvenescido. Percebia a mente ampliada. Os pensamentos tornaram-se parte do ambiente, que, por sua vez, tornou-se parte de Nobambo.

A voz que respondeu ao krokul soava clara e calma, ainda que potente:

– Sim. Talvez eu tenha sido o menos afetado, e sempre é assim. É fundamental que eu me adapte rapidamente, pois de mim vêm as bases da vida.

– Água! – concluiu Nobambo, não apenas ouvindo a afirmativa, mas sentindo-a.

– Bem-vindo. Aqui, neste tranquilo refúgio, os elementos coexistem em relativa paz. A comunicação entre nós ficará mais fácil, em especial nas primeiras etapas da sua jornada, enquanto você não aprender a perceber nossas mensagens sem racionalizar. Ainda demorará até que você atinja o verdadeiro conhecimento e a completa compreensão. No entanto, se você não se desviar do caminho, com o tempo poderá nos evocar... mas jamais comandar. E, ainda assim, se houver respeito, e se suas motivações permanecerem altruístas, nunca o abandonaremos.

– Por que vocês me escolheram?

– O cataclismo nos lançou em turbulência e incertezas. Por algum tempo ficamos perdidos. E, em você, reconhecemos o mesmo espírito, confuso e desamparado. Levou tempo até que nos recuperássemos o suficiente para entrar em contato novamente, e esperávamos que você fosse... receptivo.

Nobambo mal podia acreditar. “Mas e a Luz? Estaria renunciando a ela se escolhesse esse novo caminho? Estaria traindo-a? Seria tudo um teste?”

“O risco valeria a pena se...”

– Poderei usar essas habilidades para ajudar meu povo?

– Sim. A relação entre os elementos e o xamã é sincrônica. A influência do xamã nos acalma e une, e nossa influência enriquece e preenche o xamã. Ao terminar seu treinamento, você poderá invocar os elementos em momentos de necessidade. Se julgarmos seu propósito como justo, ajudaremos de todas as formas possíveis.

O verdadeiro entendimento, como a Água garantira, levou anos. Com o tempo, no entanto, Nobambo compreendeu as energias vitais do ambiente. Entendeu que, desde as maiores criaturas de Draenor até um único e aparentemente insignificante grão de areia, tudo está animado por energia vital, e como tal é conectado e interdependente, não importa a localização geográfica nem a polaridade das forças. E mais: Nobambo sentia tal energia como parte de si, forças que faziam parte dele verdadeiramente, como confirmara naquele momento.
Os elementos mantiveram a promessa e concederam ao krokul características da natureza deles. Da Água, recebeu objetividade e paciência: pela primeira vez em anos, pensava com clareza. Do Fogo recebeu paixão, apreço renovado à vida e desejo de superar obstáculos. A Terra lhe concedeu determinação inabalável e vontade férrea. Com o Vento, por sua vez, aprendeu coragem e persistência: como ir a fundo e avançar defronte adversidades.

Uma lição fundamental faltava-lhe, no entanto. Nobambo sabia, sentia que os elementos estavam guardando algo, um conhecimento que ele ainda não estava pronto para receber.
E... restavam os pesadelos. Conseguira algum alívio, mas noite após noite Nobambo via-se esmurrando os portões de Shattrath, atormentado pelos gritos dos moribundos. E, ao entrar na cidade e aproximar-se da fogueira, os mortos acusatórios e Korin apareciam lado a lado.

O xamã sentiu a voz suave da Água:

– Percebemos que você ainda está em conflito.

– Sim. Os espíritos dos mortos de Shattrath ainda me assombram. Os elementos poderiam me ajudar?

– Tal conflito não provém dos espíritos dos que se foram, mas de você próprio. Como tal, terá de resolvê-lo sozinho.

– Essa batalha interior impedirá que eu realize meu verdadeiro potencial como xamã?
Nobambo percebeu um riso emanando dos lagos à volta. De todos os elementos, a Água era o mais alegre. – O seu conflito – respondeu o elemento – se reflete no céu sobre sua cabeça e no chão sob seus pés. Reflete-se em mim e, especialmente, no Fogo. É consequência da eterna luta da natureza para alcançar e manter o equilíbrio.

Nobambo ponderou por alguns instantes e concluiu:

– Não importa quão longe eu seja levado pela minha jornada. O verdadeiro saber está no entendimento de que a caminhada jamais se encerra.

– Bom... Muito bom. É chegada a hora de você avançar mais um passo, uma etapa que poderá se mostrar a mais importante de todas.

– Estou pronto.

– Feche os olhos.

Assim Nobambo o fez. Sentiu a terra lhe faltando sob os pés, os elementos retirarem-se e, por um segundo aterrorizante, viu-se novamente em Shattrath, desamparado e sozinho no escuro.

Então sentiu... algo. Algo muito diferente dos outros elementais. Era avassalador: frio, mas não hostil. Diante daquilo, Nobambo percebeu-se muito, muito pequeno. Em seguida, ouviu aquela presença falar em uma profusão de vozes, femininas e masculinas, em uma harmônica sinfonia dentro e em torno de si.

– Abra os olhos.

Mais uma vez, Nobambo obedeceu. E mais uma vez experimentou um sentimento de diminuição, de insignificância, que intensificava-se conforme mergulhava num espaço escuro e infinito, repleto de uma miríade de mundos. Alguns como Draenor, e outros, imensas bolas de gelo e neve. Alguns cobertos de água, outros áridos e estéreis.

Subitamente Nobambo compreendeu... Algo aparentemente muito simples, embora tenha-lhe escapado completamente. Havia inúmeros mundos para além dali. Disso já sabia, pois seu povo havia viajado por muitos mundos antes de estabelecerem-se em Draenor. O que não percebera ainda era que o poder dos elementos estendia-se sobre tudo. Cada lugar possuía os próprios elementos, os próprios poderes a que recorrer.

E a descoberta não se resumia a isso. Ali, no éter, havia um outro elemento que parecia unir os mundos, composto de energia inimaginável. Se conseguisse evocar tal força... Nobambo percebeu, no entanto, que não atingira absolutamente a vivência necessária para comungar com tal elemento misterioso. Sua experiência ali tratava-se apenas de um lampejo, uma dádiva de conhecimento.

Uma epifania.

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