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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Estrada para a Perdição - Parte 3

Ele estremeceu e seguiu em frente apressadamente. A sala seguinte tinha vários caldeirões pequenos cheios de um líquido borbulhante esverdeado. Curioso, apesar do odor repulsivo da substância, Kel’Thuzad deu um passo à frente, mas uma garra enorme impediu sua passagem.

                – O mestre deseja que você permaneça entre os vivos. A sua hora ainda não chegou.

                Ele quase perdeu o fôlego:

                – Isso teria me matado?

                – Existem muitos que se recusam a servir o mestre em vida. O fluido dá um jeito nisso. – Vendo o olhar inexpressivo de Kel’Thuzad, o senhor da cripta disse: – Venha. Eu vou lhe mostrar.

                Anub’arak o levou a uma cela onde havia dois prisioneiros: aldeões, pelas roupas simples. O homem segurava a mulher nos braços; ela estava terrivelmente pálida e empapada de suor. Os dois estavam vivos, embora a mulher estivesse claramente doente. Constrangido, Kel’Thuzad olhou para o senhor da cripta.

                O olhar vidrado dela encontrou Kel’Thuzad e se iluminou:

                – Piedade, meu senhor! Meu corpo está debilitado. Eu vi o que vai acontecer a seguir. Uma seta de chamas, eu lhe imploro! Permita que eu descanse em paz.

                Ela temia se tornar escrava do necromante. De acordo com Anub’arak, ela não teria escolha. Kel’Thuzad desviou o olhar constrangido. Afinal, ela não viveria por muito mais tempo mesmo.

                Ela se esforçou para sair dos braços do homem e se agarrou às barras da cela:

                – Tenha piedade! Se não quiser me ajudar, pelo menos salve o meu marido! – E ela chorou desesperadamente.

                – Calma, querida – o homem murmurou atrás dela. – Eu não vou abandonar você.

                – Faça-a se calar! – Kel’Thuzad sussurrou furiosamente para Anub’arak.

                – O barulho incomoda você? – Com um movimento rápido como um raio, Anub’arak estendeu uma garra pelas barras e perfurou o coração da mulher. Depois, o senhor da cripta livrou-se do cadáver, jogando-o no chão.

                O marido dela urrou de agonia. Sentindo um alívio culpado, Kel’Thuzad começou a se virar, mas parou no instante em que o cadáver passou a se debater e se dobrar no chão de pedra. O aldeão ficou chocado e se calou.

                A pele da mulher morta estava mudando de cor, tornando-se um cinza vagamente esverdeado. Gradualmente os espasmos pararam, e ela se levantou cambaleante. Ela virou a cabeça para um lado, depois tremeu ao ver o marido.

                – Guardas, tirem esse homem daqui! – ela vociferou.

                Os guardas não se mexeram. Com um gemido, ela passou os dedos pelos cabelos castanhos embaraçados, e Kel’Thuzad pôde ver bem o rosto dela. As veias estavam ficando escuras sob a pele, e o olhar dela parecia selvagem, demente.

                O marido perguntou incerto:

                – Meu amor? Você está bem?

                Ela soltou uma risada amarga que virou um rosnado quando ele deu um passo hesitante na direção dela:

                – Não se aproxime mais.

                O homem ignorou o protesto e continuou, mas ela o empurrou com tal força, que ele voou, batendo nas barras da cela. Atordoado, ele escorregou até o chão.

                – Fique aí. – A fala dela estava ficando mais gutural. – Te machuco. – Ela se abraçou, recuou até bater na parede oposta da cela. – Te machuco, te machuco – ela choramingou, e o jeito que ela dizia isso começou a parecer estranho.

                Sem compreender, Kel’Thuzad observou enquanto ela ergueu lentamente a mão, que se mexia com espasmos, até o buraco no peito. Ela sibilou, fez uma careta e levou os dedos até a boca. Ela os lambeu e os chupou. Depois, em um movimento confuso, ela saltou sobre o marido, atacando-o com os dentes à mostra...

                O homem berrou, e sangue jorrou no chão da cela. Kel’Thuzad se encolheu. Fechar os olhos não adiantava; ele continuava escutando os sons terríveis. O rasgar, o retalhar, o mastigar. Um choramingar baixo e triste, o qual ele temia que significasse que a morta-viva tinha alguma consciência das suas ações, mas não conseguia se controlar.

                Enjoado e horrorizado, ele se teleportou para fora de Naxxramas, cambaleou um pouco para longe e vomitou. Ao encontrar um pouco de neve limpa, pegou punhados dela e esfregou-a violentamente na boca e no rosto. Ele tinha a sensação de que nunca voltaria a ficar limpo. No que foi que ele havia se metido?
                Aos poucos, ele voltou a raciocinar. O necromante não era um mero acadêmico interessado em estudar um campo da magia amplamente condenado. Nem tencionava parar depois de fortificar seu lar contra ataques. Ele estava produzindo em massa um fluido que transformava as pessoas em zumbis. Naxxramas também tinha um estoque enorme de suprimentos, armas, armaduras, campos de treinamento...

                Essas medidas não eram defensivas. Eram preparativos para a guerra.

                Um vento repentino bateu emitindo um som sobrenatural, e um grupo de aparições frias manifestou-se em frente aos seus olhos. Ele já lera sobre elas há anos na Cidadela Violeta. A vaga descrição de formas translúcidas e nebulosas não mencionara nada sobre a maldade glacial nos olhos incandescentes.

                Uma das aparições flutuou para perto dele e perguntou:

                – Está em dúvida? Como vê, seu truque não o beneficiará. Você não pode escapar do mestre. De qualquer maneira, o que você pretenderia fazer? Para onde iria? Mais importante, quem acreditaria em você?

                Lutar ou fugir: essas teriam sido as escolhas heroicas, sim, porém inúteis. Sua morte não serviria de nada. Ao concordar em se tornar aprendiz do necromante, Kel’Thuzad ganharia tempo para aumentar as próprias habilidades. Com treinamento suficiente, ele poderia ultrapassar o necromante ou pegá-lo de surpresa.

                Ele fez que sim para a aparição:

                – Muito bem. Leve-me a ele.

                As aparições o teleportaram de volta à cidadela e o escoltaram para baixo por vários salões e cômodos, dos quais Kel’Thuzad sabia que não se lembraria depois. Finalmente, nas entranhas da terra, ele e as aparições entraram numa caverna imensa cujo frio úmido penetrou fundo em seus ossos. No centro da caverna, havia uma torre de pedra vertiginosamente alta. Coberta de neve, uma escadaria espiralava pelas laterais da torre.

                Ele e as aparições começaram a subir. Seu coração batia de excitação e temor. Quando percebeu que seus passos estavam mais lentos, ele voltou a se apressar. Contudo, sua determinação não durou muito. Parecia que um peso o puxava. Evidentemente, a longa jornada por Nortúndria o cansara mais do que ele havia imaginado.

                Lá em cima, no topo da torre, ele mal conseguia discernir um grande pedaço de cristal. Intocado pela neve, ele tinha um fraco brilho azulado. Não havia sinal do necromante.
                Uma das aparições usou uma rajada de vento frígido para empurrá-lo. Seu ritmo havia voltado a diminuir. Irritado, ele apertou o manto contra si e se forçou a continuar a subir, embora estivesse resfolegando.
                O tempo passou e uma saraivada de neve fê-lo recuperar a consciência. Ele havia parado no meio da escada para se debruçar sobre seu cajado. O ar estava viciado e sufocante; ele agora ofegava. – Me deem um segundo – ele balbuciou.

                Uma aparição atrás dele disse:

                – Nós não podemos descansar. Por que você poderia?

                Com raiva, Kel’Thuzad voltou a subir e curvou os ombros diante da exaustão crescente. Ele levantou a cabeça com esforço e viu que o cristal brilhante estava mais próximo. A esta distância, ele parecia um trono denteado com formas escuras e nebulosas no interior. A coisa exalava uma aura palpável de ameaça.

                As aparições esbarraram nele, assustando-o e fazendo-o dar um grito. Os ecos reverberaram pela caverna. Ele agarrou o manto de pelame com as mãos trêmulas e pegajosas de suor. Sua respiração arranhava a garganta, e ele teve um impulso repentino e terrível de virar e sair correndo.
                – Onde está o mestre? – ele perguntou numa voz aguda e trêmula.

                Não houve resposta, apenas uma tempestade de granizo que o açoitou cruelmente. Ele tropeçou, mas voltou a se firmar. A cada passo, o trono, que se agigantava acima dele, parecia mais opressivo, empurrando sua cabeça para baixo, curvando suas costas. Ele mal conseguia andar ereto. Pouco depois, ele caiu de quatro.

                E então, o necromante falou diretamente com Kel’Thuzad numa voz que não era mais nem remotamente gentil. Que esta seja sua primeira lição. Eu não tenho amor algum por você nem por seu povo. Ao contrário, eu pretendo varrer a humanidade deste planeta, e não se engane: tenho poder para isso.

                Implacáveis, as aparições não permitiram que ele parasse. Mais do que humilhado, ele abandonou o cajado e começou a rastejar. A malevolência do necromante o comprimiu, empurrando-o mais fundo na neve. Kel’Thuzad estava tremendo e gemendo... Ó deuses, como ele estivera errado, estúpida e tremendamente errado. Isso não era fadiga. Era terror absoluto.

                Você não vai me pegar desprevenido, pois eu não durmo, e como já deve ter adivinhado, eu consigo ler seus pensamentos tão facilmente quanto você lê um livro. Nem espere me derrotar. Sua mente insignificante não é capaz de lidar com as energias que eu manipulo sem pestanejar.

                Kel’Thuzad tinha rasgado as vestes a muito tempo e as perneiras eram inúteis contra a pedra gelada da escada escarpada. Seus pés e suas mãos deixavam rastros ensanguentados enquanto ele lutava para subir a última espiral. O trono, cercado de bruma, radiava um frio que gelava até os ossos. Um trono não de cristal, mas de gelo.

                A imortalidade pode ser uma grande vantagem. Ela também pode ser uma agonia tão intensa que você jamais imaginou existir. Desafie-me, e eu o ensinarei o que aprendi sobre dor. Você implorará para morrer.

                Ele chegou a poucos metros do trono, mas não conseguiu se aproximar mais, preso sob a aura esmagadora de ódio e poder inumanos daquilo. Uma força invisível desceu sobre ele e comprimiu sua face contra a pedra rígida:

                – Por favor. – Ele se viu soluçando. – Por favor! – Mais palavras escaparam.

                Finalmente, a pressão cedeu. As aparições esvoaçaram para longe, mas ele sabia que não deveria se levantar. Duvidava até se iria conseguir. Contudo, seus olhos procuraram seu algoz.

                Um conjunto de armadura estava sentado dentro do trono, em vez de sobre ele. Kel’Thuzad talvez tenha pensado que a armadura era simplesmente preta, mas, ao piscar os olhos com força, ele viu que luz nenhuma era refletida da superfície dela. Aliás, quanto mais ele olhava, mais parecia que ela devorava toda luz, esperança e sanidade.

                O elmo adornado cheio de pontas obviamente também servia como coroa. Ele exibia apenas uma única gema azul e, como o resto da armadura, parecia vazio. Em uma manopla, a figura apertava uma enorme espada cuja lâmina havia sido entalhada em runas. Aqui havia poder. Aqui havia desespero.

                Como meu tenente, você vai obter conhecimento e magia para superar seus sonhos mais ambiciosos. Mas em troca, vivo ou morto, você vai me servir pelo resto de seus dias. Se me trair, eu o transformarei em um dos meus dementes, e ainda assim, você me servirá.

                Servir esse ser espectral, esse Lich Rei, como Kel’Thuzad estava começando a considerá-lo, certamente traria grande poder a Kel’Thuzad... e o amaldiçoaria por toda a eternidade. Mas a compreensão disso veio tarde demais. Além disso, maldição pouco significava sem a perspectiva da morte verdadeira.

                – Eu sou seu. Juro – disse ele numa voz rouca.

                Em resposta, o Lich Rei enviou a ele uma visão de Naxxramas. Figuras pequenas com vestes negras formavam um círculo do lado de fora, na geleira. Seus braços, visivelmente envoltos em magia negra, se erguiam e se abaixavam no ritmo de um canto monótono que escapava à compreensão de Kel’Thuzad. Tremores sacudiram o chão debaixo dos seus pés, mas elas continuaram o feitiço.

                Você seguirá adiante e será testemunha do meu poder. Você será meu embaixador para os vivos, e reunirá um grupo de pessoas que pensam como você para levar meus planos adiante. Através da ilusão, persuasão, doença e da força bruta, você instituirá meu domínio sobre Azeroth.

                Para assombro de Kel’Thuzad, o gelo se mexeu e rachou, e o topo de um zigurate penetrou o chão gelado. Uma construção estava sendo erguida do solo. Enquanto as figuras com vestes redobravam os esforços, a vasta pirâmide continuou sua impossível emersão. Pedaços de gelo e terra voaram com uma força explosiva. Logo, toda a estrutura havia se desgarrado da terra. Lenta, mas seguramente, Naxxramas se ergueu no ar.

                Esta será a sua nave.

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