menu

domingo, 15 de janeiro de 2012

Inteiro - Parte 3

– Certamente tua sobrevivência é um sinal, uma mensagem da Luz, que abençoa cada um de nós à sua própria maneira. Quando chegar a hora, tu a encontrarás novamente.

– Espero que seja verdade, velho amigo. Eu, simplesmente... Não me sinto o mesmo. Algo mudou dentro de mim.

– Não digas bobagem. Estás cansado e confuso, e após tudo por que passou, nem podemos culpar-te por sentir-te assim. Descansa um pouco.

Rolc saiu da caverna. Nobambo se recostou e fechou os olhos...

Gritos. Apelos exasperados das fêmeas.

Os olhos de Nobambo se abriram. Já estava ali havia vários dias, em um dos acampamentos montados pelos que se esconderam antes da batalha. Contudo, não conseguia escapar dos comoventes gritos das mulheres que deixou para morrer. Elas chamavam por ele toda vez que seus olhos se fechavam, implorando por ajuda, por salvação.

“Você não teve escolha.”

Mas isso seria verdade mesmo? Ele não tinha certeza. Nos últimos tempos, Nobambo tinha cada vez mais dificuldade em pensar direito. Os pensamentos eram turvos, desconexos. O draenei suspirou profundamente e se levantou do cobertor estendido sobre o chão de pedra, gemendo por causa das juntas doloridas.

Nobambo saiu entre a névoa do pântano e abriu caminho por entre o solo alagado e repleto de juncos. O Pântano Zíngaro era um território inóspito mas, por ora, seria seu lar.

Aquele pantanal sempre fora evitado pelos orcs, e com razão. Toda a região estava coberta por uma camada rasa de água salobra. Grande parte da flora e da fauna era venenosa se não preparadas adequadamente. Muitas criaturas do pântano comeriam qualquer coisa que não as devorasse primeiro.

Enquanto avançava por entre cogumelos gigantes, altos como torres, o sobrevivente ouviu gritos: um tumulto se formara perto do acampamento.

Nobambo correu para ver o que estava acontecendo. Três draeneis espancados, dois machos e uma fêmea, estavam sendo acudidos por membros do acampamento, logo após a guarda do perímetro. Outro, inconsciente, estava sendo carregado por eles.

Nobambo lançou um olhar questionador para um dos guardas, que respondeu à pergunta silenciosa:

– Sobreviventes de Shattrath.

Alarmado, Nobambo seguiu o grupo de volta às cavernas, onde os sobreviventes foram cuidadosamente deitados sobre cobertores. Rolc tocou o draenei inconsciente, mas não conseguiu acordá-lo.

A fêmea, aparentemente atordoada, murmurava:

– Onde estamos? O que aconteceu? Não estou sentindo... Alguma coisa está...

Rolc se aproximou e fez ela se calar:

– Acalma-te. Estás entre amigos agora. Tudo vai ficar bem.

Nobambo fazia-se perguntas. Tudo realmente ficaria bem? Já acontecera de grupos de orcs caçadores descobriram um acampamento e o exterminarem. E esses quatro, como sobreviveram? Quantos horrores essa fêmea teria presenciado? O que teria levado o draenei inconsciente a tal estado catatônico? Além disso, a aparência deles e o jeito como agiam... Nobambo se perguntava se os ferimentos deles transcendiam o físico: eles pareciam exauridos, desprovidos de espírito.

Eles pareciam como ele próprio se sentia.

Muitos dias depois, os sobreviventes haviam se recuperado o suficiente para que Nobambo se sentisse confortável para perguntar-lhes sobre Shattrath.

A fêmea, Korin, falou primeiro. A voz dela falhava ao relatar a experiência:

– Tivemos sorte. Ficamos nas profundezas da montanha, em um dos poucos esconderijos que não foram descobertos... ao menos em sua maior parte.

Nobambo estava intrigado.

– Em um certo ponto – continuou a sobrevivente – os monstros de pele verde nos encontraram. A batalha que ocorreu foi... Eu nunca tinha visto coisas assim. Quatro dos homens que se ofereceram para defender o grupo foram massacrados, mas também mataram muitos orcs.

Finalmente, restaram apenas Herac e Estes. Eles mataram as criaturas que restaram, feras selvagens. E aqueles olhos, aqueles olhos terríveis... – Korin estremeceu ao lembrar.
Estes acrescentou:

– Houve uma explosão. Momentos depois, um gás pútrido invadiu o nosso esconderijo, sufocando-nos, causando um enjoo como nenhum outro que já tínhamos sentido.

Nobambo lembrou da névoa vermelha artificial e logo reprimiu a lembrança. Herac interrompeu Estes:

– Sentíamos como se estivéssemos morrendo. Quase todos desmaiamos. Quando acordamos, já era manhã. Os níveis superiores estavam desertos. Conseguimos chegar nos Picos da Barreira e, de lá, seguimos viagem para Nagrand, onde fomos encontrados muitos dias depois.

– Quantos de vocês estavam lá? – perguntou Nobambo.

– Vinte, talvez mais. Principalmente mulheres, algumas crianças. Outros chegaram alguns dias depois, como o draenei que está inconsciente na caverna... Akama, ele disse que se chamava assim. Nos disseram que ele foi exposto a mais gás do que qualquer outro sobrevivente. Rolc ainda não sabe ao certo se... – Herac deteve-se e permaneceu em silêncio.
Estes prosseguiu:

– Acabamos sendo separados e enviados para diversos acampamentos no Pântano Zíngaro e em Nagrand. Uma precaução, para que, se um dos acampamentos fosse descoberto pelos orcs, não fôssemos todos mortos.

– Havia algum sacerdote ou Vindicante dentre vocês? Algum portador da Luz?
Os três menearam a cabeça negativamente, e Herac explicou:

– Não posso falar por Akama, mas Estes e eu éramos simples artesãos, sem familiaridade com qualquer tipo de arma. Foi por isso que nos mandaram para as cavernas, para sermos a última linha de defesa.

Korin dirigiu-se a Nobambo:

– Quando escapaste, mais alguém conseguiu ir contigo? Houve mais sobreviventes? Ouvimos os orcs nos níveis inferiores, mas não queríamos correr o risco de sermos descobertos, então fugimos.

Nobambo pensou nas pilhas de corpos no Bairro Inferior... Ouviu as súplicas vindas do Terraço dos Aldor, tentou expulsar da mente os gritos das fêmeas torturadas.

– Não – respondeu. – Não sei de mais ninguém.

Estações se passaram.

Velen, o profeta líder dos draeneis, visitara os sobreviventes havia dois dias... ou seriam quatro? Ultimamente, Nobambo estava tendo dificuldade em lembrar de algumas coisas. Velen viera de um dos acampamentos vizinhos. A localização exata dele era um segredo guardado a sete chaves, dado o risco de alguém ser sequestrado e torturado. Ninguém poderia revelar informações que não conhecesse. De qualquer forma, Velen falara com eles sobre o futuro que os aguardava, sobre a importância de permanecerem discretos por muito tempo, possivelmente por anos, para observar e aguardar o que aconteceria com os orcs.

De acordo com Velen, os orcs haviam dado início à construção de algo que parecia tomar todo o tempo e todos os recursos deles. O projeto tinha, aparentemente, desviado a atenção dos monstros esverdeados da caça aos draeneis, ao menos por ora. O que estavam construindo, não muito longe da principal cidadela órquica nas terras calcinadas, parecia ser algum tipo de portal.

Velen parecia saber muito mais do que havia contado, mas ele era, afinal de contas um profeta, um vidente. Nobambo pensou que o nobre sábio devia saber muitas coisas, coisas que ele e outros simplesmente não entendiam por faltar-lhes a sabedoria necessária.

Mais tarde, Nobambo assistia a Korin entrar na água com uma lança de pesca quando reparou que algo nela parecia diferente. Ele tinha a impressão de que o físico dela havia mudado nas últimas semanas. Os antebraços estavam ligeiramente maiores; o rosto dela parecia sem energia; e a postura dela havia se deteriorado. Por mais improvável que isso soasse, a cauda parecia ter encolhido.

Herac e Estes se aproximaram, e Nobambo podia jurar ter notado transformações similares neles. Ele olhou para baixo, para os próprios antebraços. Estaria ele imaginando coisas, ou eles pareciam inchados mesmo? Ele não se sentia bem desde... desde aquela noite. Mas imaginou que se recuperaria com o tempo. Agora, estava ficando cada vez mais preocupado.

Korin se aproximou e disse, entregando a lança para Nobambo:

– Por hoje, chega. Preciso me deitar.

– Você está bem?

Korin tentou sorrir, mas faltava-lhe convicção. – Estou só cansada – respondeu.

Nobambo sentou no topo das montanhas que se debruçavam sobre o Pântano Zíngaro e fechou os olhos. Sentia-se extremamente cansado, e estava ali para ficar só. Fazia dias que não via Korin. Ela, Estes e Herac haviam se enfiado em uma caverna. Nobambo perguntou aos demais membros do acampamento como estavam os amigos, mas deram-lhe de ombros, ignorantes da situação. Quanto ao draenei chamado Akama, ele permanecia sem reação, quase morto apesar dos esforços de Rolc.

Algo estava muito errado. Nobambo sabia: ele havia percebera as mudanças em si próprio e nos outros sobreviventes, inclusive em Akama. O restante do acampamento também sabia. Os companheiros pareciam se dirigir a ele cada vez menos, inclusive o Rolc. E, noutro dia, quando Nobambo havia retornado ao acampamento com alguns peixes pequenos, disseram-lhe que já tinham o bastante e que ele próprio deveria comê-los... como se o mal que afetava ele e os outros, qualquer que fosse, pudesse ser transmitido pela comida manipulada por ele.

Nobambo estava enojado. Tudo que fez pela raça não significara nada? Ele passou a gastar horas e horas no alto das montanhas, contemplando quietamente, forçando a mente a se concentrar, tentando desesperadamente conseguir o que permanecia inatingível: acessar a Luz. Era como se uma porta lhe tivesse sido fechada, como se a parte da mente dele que era capaz de contactá-la tão facilmente não mais funcionasse ou, pior ainda, não existisse mais.

Até atividades simples como essas faziam a cabeça dele doer. Ultimamente, estava ficando cada vez mais difícil articular os pensamentos. Os braços continuaram a inchar, um inchaço que não ia embora, e os cascos começaram a se estilhaçar. De fato, pedaços deles haviam caído e não tornaram a crescer. E, enquanto isso, os pesadelos... os pesadelos persistiam.
Ao menos, as patrulhas órquicas haviam se tornado menos frequentes. Os relatórios dos batedores davam conta de que, seja lá o que fosse que os orcs estavam construindo, estava quase tudo completo. E parecia se tratar de alguma espécie de portal, exatamente como Velen previra.

“Bom”, pensou Nobambo. “Espero que os orcs passem por aquilo e apareçam no inferno.”
O combalido draenei se ergueu e, lenta e deliberadamente, tomou o caminho de volta ao acampamento, grato por poder apoiar-se no martelo, o qual havia se tornado tão pesado ao longo das últimas semanas que era preciso carregá-lo de cabeça para baixo, usando-o, sobretudo, como bengala.

Horas depois, Nobambo chegou ao destino e decidiu falar com Rolc. Juntos, eles poderiam convocar uma reunião para tratar da questão da intolerância crescente exibida por...

Nobambo parou na entrada da caverna de Rolc. Korin estava lá, deitada sobre um cobertor. Estava tão transformada que já não se parecia como uma draenaia, mas como um arremedo da raça. Ela estava adoecida e esquálida. Seus olhos estavam amarelados, e seus antebraços estavam muitíssimo inchados. Os cascos estavam destruídos a ponto de não restar nada além de duas protuberâncias ósseas, e a cauda não passava de um cotoco diminuto. Apesar da aparência frágil, ela se debatia nos braços de Rolc.

– Eu quero morrer! Eu só quero morrer! Não aguento mais essa dor!

Rolc a segurava com firmeza. Rapidamente, Nobambo inclinou-se para perto dela.

– Não sejas tola! – Nobambo olhou para Rolc. – Não podes curá-la?

O sacerdote deu de ombros para o amigo. – Eu tentei!

– Solta-me! Deixa-me morrer!

Um brilho emanou das mãos de Rolc, o que acalmou Korin, subjugando-a gentilmente até apaziguar a agitação e, finalmente, cessá-la por completo. A draenaia começou a chorar copiosamente e se encolheu em posição fetal. Rolc fez um movimento com a cabeça, indicando que eles deveriam sair da caverna.

Uma vez lá fora, Rolc olhou fixamente para Nobambo. – Fiz tudo que eu sabia. É como se o corpo dela, assim como sua vontade, tivessem sido degradados.

– Deve haver algo que possa... Alguma forma de... – Nobambo lutava para comunicar seus pensamentos adequadamente. – Temos de fazer alguma coisa! – afirmou, finalmente.

Rolc ficou em silêncio por um momento. – Estou preocupado com eles e contigo. Temos recebido relatórios a respeito de sobreviventes de Shattrath em outros acampamentos que estão passando pela mesma situação. Seja lá o que isso for, não está respondendo a qualquer tipo de tratamento e não está melhorando. O nosso povo teme que, se providências não forem tomadas, estaremos todos perdidos.

– O que estás dizendo? O que aconteceu?

– É só conversa – Rolc suspirou – por enquanto. Tentei ser a voz da razão, mas nem mesmo eu sou capaz de defende-te e os demais por muito tempo. E, com toda franqueza, nem sei se eu deveria.

Nobambo estava amargamente decepcionado com o amigo, a única pessoa em quem ele podia confiar, e que agora sucumbia à mesma mentalidade limitada e paranoica dos outros.
Sem palavras, Nobambo deu-lhe as costas e foi embora.

O estado de Korin piorou, e a decisão que Nobambo temia, aquela mencionada por Rolc, foi finalmente tomada alguns dias depois.

Nobambo, Korin, Estes e Herac foram reunidos perante os membros do acampamento. Alguns estavam com expressões sombrias; uns pareciam tristes; outros, impassíveis. Quanto a Rolc, ele parecia resoluto apesar do conflito, tal como um caçador que prefere não matar, mas sabe que precisa comer e está se preparando para desferir um golpe fatal na presa.
No final das contas, Rolc havia sido escolhido pelo acampamento como porta-voz:

– Isso não é fácil para mim, tampouco para qualquer outro aqui... – Apontou para a assembleia estoica atrás de si. – Mas conversamos com representantes dos outros acampamentos e, juntos, chegamos a uma decisão. Acreditamos que será melhor para todos os envolvidos se os... afligidos... se juntarem, mas... separados dos demais, que estão saudáveis.

Korin, que parecia particularmente devastada, indagou rispidamente:

– Estamos sendo banidos?

Antes que Rolc pudesse responder, Nobambo interrompeu:

– É exatamente isso! Não conseguem resolver os nossos problemas, então eles... eles acham que podem nos ignorar! Eles nos querem longe!

– Não temos como ajudar-vos! – exclamou Rolc. – Não sabemos se essa doença é contagiosa, e a capacidade física reduzida, as faculdades mentais debilitadas são um risco que não podemos assumir. Somos muito poucos para nos permitirmos correr riscos!

– E quanto ao outro, o Akama? – Korin perguntou.

– Ficará aqui, sob meus cuidados, até acordar – respondeu Rolc – se ele acordar.

– Quanta gentileza a tua – Nobambo resmungou, sarcástico.

Rolc se pôs de pé, desafiadoramente, perante Nobambo. Apesar da saúde precária, Nobambo se empertigou e encarou Rolc.

– Tu próprio disseste se perguntar se a Luz silenciou-se para punir-te pelo fracasso em Shattrath – disparou Rolc.

– Dei tudo de mim em Shattrath! Eu estava preparado para morrer para que tu, para que todos pudessem viver!

– Sim, mas tu não morreste.

– Mas o que estás... Estás dizendo que desertei?

– Acho que, se a Luz abandonou-te, ela o fez com razão. Quem somos nós para questionar a Luz? – Rolc olhou para trás em busca de apoio dos demais. Alguns desviaram o olhar, mas muitos não. – Qualquer que seja o caso, acho que é hora de aceitares tua nova posição na ordem das coisas. Acho que é hora de levar o bem-estar dos demais em consideração...

Rolc se abaixou e arrancou o martelo das mãos de Nobambo.

– E acho que está na hora de parares de tentar ser algo que não és.

Nenhum comentário:

Postar um comentário